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Panis et circenses

Uma ruptura colorida chamada Tropicália

Foi em 1967 que Gilberto Gil e Caetano Veloso - baianos de alma, sangue e coração - acenderam a primeira faísca daquela que viria a se tornar a maior revolução musical da nossa história. Neste ano, em meio a repressão de um regime totalitário, a TV Record organizava - no Teatro Renault, em São Paulo - o III Festival da Música Popular Brasileira. Para uma plateia efusiva, Domingo no Parque e Alegria, Alegria foram interpretadas. Seus versos, que apresentavam um novo panorama crítico da realidade nacional, causaram um misto de estranhamento e euforia em quem as escutava pela primeira vez.


Acompanhado de Os Mutantes - uma banda de rock quase que oposta à Jovem Guarda e que tinha Rita Lee em seus vocais - Gil lançou com Domingo no Parque, uma canção sangrenta de amor, que com traições e assassinatos contava o drama de José ao assassinar, por ciúmes, o seu amigo João e a sua amada Juliana. A melodia psicodélica que apresentava instrumentos variados e sons típicos de um parque de diversões, rendeu a Gil o prémio de melhor arranjo musical e o 2º lugar da competição. Era esta, a primeira cartada de um experimentalismo que viria florescer nos meses seguintes. Uma nova vertente musical que estava mais interessada em criar novas estéticas do que seguir aquelas que já existiam.

Com 25 anos, Caetano Veloso ainda se sentia um adolescente. Segundo o próprio, na autobiografia Verdade Tropical, sua personalidade na época orbitava em uma zona periférica marcada pela repressão, pela definição sexual e pela satisfação dos anseios de liberdade. Essas características foram determinantes na composição de Alegria, Alegria, uma canção que traduz os anseios da juventude da classe média ao alinhar o vocabulário pop com a linguagem da publicidade e dos meios de comunicação de massa vigentes no fim dos anos 60. Com suporte do grupo Beat Boys, Caetano conquistou - sem lenço e sem documento, num sol de quase dezembro - a 4ª colocação do festival, transformando as vaias do público em aplausos entusiasmados. 

Com o relativo sucesso das duas canções precursoras, foi dada a largada para uma série de composições inconformistas - feitas principalmente por Gil e Caetano - que procuravam alinhar a tradição da música popular brasileira com os novos elementos que a modernidade fornecia. Surgiu então o nome tropicalismo - inspirado na obra Tropicália, de Hélio Oiticica, uma instalação artística que colocava o público em contato com elementos naturais e culturais do Brasil e os contrastava com a programação efervescente da TV aberta. 

Foto: Jacquemart/Flickr.

Em 1968, sete meses após o festival da TV Record, era lançado o álbum Tropicalia ou Panis et Circencis. Considerado o principal manifesto do movimento e lançado pela gravadora Philips, o disco reunia - além de Gil e Caetano - Gal Costa, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé, os poetas Capinam e Toquarto Neto, e o maestro Rogério Duprat. O principal destaque do disco, a canção Panis et Circensis - interpretada pelos Mutantes - mistura ritmos tradicionais com a inovação da guitarra elétrica, questionando os comportamentos da burguesia e da família e seus hábitos tipicamente nacionais, marcados pelo cinismo, pela hipocrisia e pela ignorância.

Foto: Rubens Gerchman e Olivier Perroy/Gravadora Philips.

Estava consolidado, a partir deste ponto, o movimento tropicalista. Como um grito de liberdade criativa, que colocava atitude no palco, a Tropicália retomou pesquisas do modernismo antropofágico de Oswald de Andrade, apresentados na Semana da Arte Moderna de 1922. Juntando um inconformismo estético e social, misturavam dados políticos, antropofágicos e folclóricos para formar um retrato da dura realidade da época e questionar a sociedade brasileira. Foi, para muitos pesquisadores, a primeira tentativa consciente de impor uma imagem obviamente brasileira nas concepções artísticas.


Submetidos a um nacionalismo populista, de um lado associava-se ao psicodelismo, ao comportamento hippie e a música pop. De outro, ressuscitava arcaísmos brasileiros de som e de cor, em uma mistura que ficou conhecida como “cafonismo”. A manifestação também reviu a forma como os artistas se expressavam a respeito do golpe de 64. Acompanhados da ambiguidade que é intrínseca a qualquer tomada de posição, sofreu críticas tanto da direita autoritária - que se mantinha no poder através de uma Ditadura Militar - até dos movimentos puristas de esquerda. Em sua concepção, não diferenciava o viés das represálias e se mantinham com o objetivo de desalienar os indivíduos para um novo comportamento ético-social.

Foto: O Globo.

Ainda em 68, Caetano lançou aquela que ficou conhecida como o hino do tropicalismo, a canção Tropicália. Com um pessimismo alegre que misturava a desigualdade nacional com a exuberância de um país diverso, a música - que inicialmente se chamaria Mistura Fina - foi baseada no samba Coisas Nossas, de Noel Rosa. Para Veloso, esta composição colocou suas dedicações definitivas no universo musical, que era algo que ainda o parecera provisório. Em um dos trechos da música, Cetano relaciona a praia de Iracema - do Ceará - com a de Ipanema, no Rio de Janeiro. Enquanto a primeira foi nomeada dessa forma em homenagem a índia dos lábios de mel, do romance de José de Alencar, a segunda nomeou uma das mulheres mais famosas do imaginário brasileiro: a Garota de Ipanema, de Tom e Vinícius.

Esta é parte da história da revolução colorida que influenciou a música e a cultura brasileira.

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