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Geovana Nunes

QUEM NOS FAZ DE TRUMAN BURBANK?


Divulgação/HBO Max

"O show de Truman: o show da vida" estreou no Brasil no dia 30 de outubro de 1998 e conta com Jim Carrey no papel principal. O ator, conhecido por seus papéis cômicos em "O Grinch", "Ace Ventura" e muitos outros filmes, interpreta Truman Burbank. Cidadão comum da cidade paradisíaca de Seahaven, Truman não faz ideia que sua vida é, na verdade, um reality show. Sendo a história do filme a trajetória do protagonista rumo à verdade, o longa-metragem é uma alegoria de como a mídia é essencial na manutenção da sociedade tal como ela está.


Na história, o reality surge como uma necessidade de se ter reações reais na TV, pois os atores seriam artificiais demais e o público estaria cansado deste modelo de programas. Mas atenção, se você não assistiu ao filme e se interessou, e principalmente se importa com spoilers, pare por aqui: assista ao longa e depois volte para conferir a análise.


Truman foi filmado durante toda sua vida, não apenas isso como todos as pessoas ao seu redor eram atores. Ou seja, por mais que Marlon, o melhor amigo de Truman, diga que “nada aqui é falso… só é controlado", tudo é claramente falso. Entretanto, é a questão do controle que salta aos olhos, haja vista que a produção do reality funciona como um aparato midiático fora da ficção.


A partir das ordens de Christof, o diretor do programa, a mídia da cidade explica as falhas que servem de pista para que Truman questione a "realidade" que ele experimenta. E fora do filme, uma das funções dos jornais, rádios, TV e de toda a mídia é organizar o caos do mundo além de traduzir a realidade confusa e conturbada para o espectador. Nesse sentido, não é por acaso que essa seja a função dos noticiários dentro do filme. A própria palavra mídia vem do latim media, plural de médium e quer dizer meio. Desse modo, a mídia é o meio pelo qual temos contato com o mundo que está além da realidade.Dessa forma, a mídia dentro do filme utiliza de várias maneiras de manipulação, sendo elas sutis ou não. Como no caso em que o holofote, que representa uma das estrelas da constelação de Sírius, cai perto de Truman e logo depois o noticiário da rádio, no qual ele ouve no carro, informa que peças caíram de uma aeronave.


A produção é liderada não apenas por Christof, mas também por produtores e patrocinadores, assim como a mídia fora do filme. Da mesma forma que na realidade, os meios de comunicação manipulam Truman ao criar o seu pior trauma. Tendo em vista que quando o personagem cresceu, ficou cada vez mais difícil mantê-lo na ilha, sendo assim, eles orquestraram um acidente traumático no mar, pois essa seria uma das únicas formas de fugir.


Mas porque Truman sairia? O jornal mostrou, quando Burbank dizia que desejava ir para Fiji, que Seahaven era a melhor cidade do planeta. Na própria agência de viagem ele encontra cartazes sobre os perigos de viajar de avião, mesmo que não faça sentido a agência desestimular seus clientes. Para reforçar seu medo do mar e fazê-lo desistir de viajar, ele é mandado para outra ilha. Entretanto, não consegue pegar a balsa, pois tamanha é seu medo das águas gélidas e salgadas. Ainda que tudo à sua volta seja muito estranho e suspeito, ele demora para questionar a realidade. Porém, só nos parece estranho porque sabemos que é um reality, Truman não. Ele foi condicionado naquela redoma por toda a sua vida, para os seus sentidos e sua razão tudo é real por boa parte do filme.


O próprio Christof afirma que Truman não questiona porquê "Nós aceitamos a realidade do mundo que nos é apresentada”. Desse modo, essa é outra pista de que o filme é uma alegoria à realidade humana, pois existe uma concordância de dois espectadores quando o diretor diz isso. E essa fala, assim como todo o filme, tem total relação com A Alegoria da Caverna. O texto escrito por Platão é um diálogo protagonizado por Sócrates onde se discute sobre o que é ou não real. Nesse sentido, os moradores da caverna são presos por grilhões postos em seus pés e não conseguem mexer o pescoço. Tudo o que eles veem são sombras no fundo da caverna, sendo o mundo deles a sombra do mundo. Para os prisioneiros, a realidade é o que se reflete na parede, assim como Truman acreditava na realidade de seu mundinho.


No sentido da alegoria, a mídia deveria assumir o papel do prisioneiro que se libertou e veio iluminar as sombras. Mas não é assim no filme e nem na vida. Boa parte dos meios de comunicação tradicionais, ou de massa, atua para a manutenção dos prisioneiros e para a manutenção de Truman onde ele está.


Mas por que os outros membros da produção não questionam a situação? Nesse sentido, é possível dizer que eles normalizam a conjuntura. A nível de exemplificação, quando a filósofa Hannah Arendt escreve "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal" cria-se o termo banalidade do mal, se referindo à falta de reflexão sobre os absurdos da realidade e as barbáries. Nessa perspectiva, tal teoria relaciona-se com a hipótese que levanto sobre a razão da maioria dos funcionários do show não impedirem que Truman fosse enganado a vida inteira. Mas a esperança nasce em uma cena próxima ao fim do filme, onde acontece uma intervenção externa, mesmo que isso tenha significado desobedecer Christof.


Christof, é uma metáfora para os meios de comunicação da vida real. Nesse sentido, os funcionários de Christof são como os jornalistas. Ainda que existam regras de conduta dentro da imprensa e a linha editorial, posição política do veículo, sejam muito fortes, é papel do jornalista jamais banalizar o mal e relativizar o absurdo.


Outro ponto interessante do filme é que os desejos de Truman são controlados. Quando ele pensa em sair, forças externas ( mãe, esposa e TV) reforçam como sua vida é boa. Entre amigos, o protagonista tem uma vivência confortável, mas ao mesmo tempo insuportável e monótona. Truman assiste um programa denominado ``Me mostre o caminho de casa'' que é “um hino de amor a uma pequena cidade que nos ensina que não é preciso sair de casa para descobrir o significado do mundo…”. Uma das manchetes do jornal que ele compra todos os dias é "Quem precisa da Europa?". Tudo sempre é jogado quando o mesmo demonstra insatisfação.


Como já demonstrado, tudo conspira para que Truman jamais questione a realidade e queira deixar Seahaven, para que ele continue na menoridade, que segundo o filósofo Immanuel Kant, é o estado humano de não reflexão, onde se aceita tudo que lhe é imposto. Entretanto, a realidade, no filme e fora dele, não é apocalíptica, porque mesmo que todos ao redor de Truman realizem intervenções e o façam parecer louco, o mesmo ainda questiona certos pontos. Não é por acaso que o filme começa justamente com o protagonista debatendo sua sanidade.



(Reprodução/HBO Max)



Essa insatisfação e as reflexões de Truman contradizem, em parte, um dos pensadores mais notáveis da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, que afirma que a mídia tradicional e a cultura de massa alienam o sujeito de si e do mundo. É claro que, como o próprio filme demonstra, isso acontece bastante, mas o sujeito não é completamente passivo e moldável à qualquer vontade de outrem.


Truman após conhecer uma mulher, passa a querer sair da ilha, querer vê-la e é a partir das falhas da produção ao tentar impedi-lo de descobrir a verdade, que ela é revelada. Ou seja, aquele acontecimento muda sua perspectiva de certa forma e ele começa a busca por essa mulher. Não importa como, ele quer encontrá-la, porém só não consegue porque sua mãe fica doente, mais uma clara amostra da manipulação da produção do show.


Christof julga que Truman é completamente influenciável. É como se o programa fosse sua obra prima, e ele julga conhecer seu protagonista como ninguém. Assim como a Indústria Cultural (que é a indústria do entretenimento e da qual faz parte toda a produção artística) sempre investe em novelas, filmes e séries de estrutura parecidas, pois julga saber aquilo que o público almeja. Tal qual a cultura pop que se recicla o tempo todo. Pois é difícil ser inovador e criar algo completamente original, visto a quantidade de obras já criadas e como elas servem de referência para os artistas. Dentro dos próprios movimentos artísticos os clichês e as fórmulas são reutilizados, porque se provaram eficazes nas produções anteriores. E tudo isso é o que Adorno chama de Indústria Cultural. Essa produção massiva de entretenimento e arte.


Quando o diretor diz que “Ele pode sair quando quiser se ele fosse mais ambicioso, se estivesse absolutamente disposto a descobrir a verdade…”, o filme está fazendo outra alegoria à realidade. Nesse caso, a referência é à tendência liberal contemporânea de que o indivíduo pode fazer tudo que quiser, basta ele querer, ter força de vontade, deixar a preguiça de lado e por a mão na massa. Como se não houvesse, dentro e fora do filme, forças que agissem para que não exista essa conquista, para que Truman não saia da redoma e a sociedade continue a mesma. Seja a conquista da verdade, seja de um milhão de reais. Porque não, você não vai ficar rico somente agregando à empresa e trabalhando enquanto eles dormem.


E é também dentro dessa falácia do neoliberalismo que a mídia tradicional age como a mídia dentro de “O show de Truman”. Como por exemplo, assumir uma postura indicando para você ir ao trabalho de ônibus ou bicicleta, porque a gasolina está muito cara. Ou sugerir redução no tempo de banho, já que a energia é um absurdo. Ou até mesmo alternativas ao arroz, porque, afinal de contas, o alimento sofreu uma alta no preço. Tudo isso parece benéfico e aparentemente ingênuo, mas é uma forma de desviar da raiz do problema, do porquê os preços estão absurdos. Assim como o programa reforça para Truman que ele deve ficar no conforto incômodo do seu lar.



Reprodução/HBO Max


Por fim, o subtítulo do filme, "o show da vida" é mais uma das pistas da sua alegoria interna. O show não é da vida de Truman. É da nossa vida. Nesse sentido, não é ao acaso que os telespectadores do programa sempre aparecem no filme. Aqui não estará escrito sobre o final do filme, mas expresso o meu desejo de que nós nos libertemos das nossas redomas. Dos nossos grilhões. E que possamos virar os pescoços em todas as direções e ver o mundo tal como ele é. Com sóis, luas e pessoas de verdade.



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