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‘“Que horas ela volta?” e o nojo que os parasitas têm dos “ratos”

Crítica do filme “Que horas ela volta?” estrelado por Regina Casé que escancara preconceitos sociais e questões sobre maternidade



Foto: (Gabriela Bispo/Gshow/Divulgação/Regina Casé)

Não existe dia mais simbólico do que o dia das mães para falar sobre “Que horas ela volta?”. O filme foi produzido em 2015 e estreou em 27 de agosto do mesmo ano no Brasil, seu país de origem. Dirigido por Anna Muylaert, o longa conta a história de Valdirene Ferreira (Regina Casé), ou simplesmente Val, que vê sua vida mudar quando sua filha, Jéssica (Camila Márdila), vai para São Paulo morar com ela na casa de seus patrões. Aviso amigo: essa crítica contém alguns spoilers, então se você não gosta deles assista o filme e depois corra aqui.


Apesar de não ter sido indicado para a categoria de Melhor Filme Estrangeiro do Oscar de 2016, o filme possui quesitos técnicos que merecem nossa apreciação. A começar pela direção de Anna Muylaert. Com uma câmera calma e curiosa, que nos representa como observadores que querem saber os próximos rumos das confusões, ela conta uma história real e incômoda. O realismo é presente na direção e na fotografia. Com a adoção de uma iluminação natural, a falta de trilha sonora expressiva e as atuações muito afiadas de todo o elenco, destaco especialmente Karine Teles (Bárbara), Regina Casé e Lourenço Mutarelli (José Carlos), o filme parece uma cena retirada de um reality. Porque é absurdamente cotidiano.

O roteiro de Muylaert e Regina chega a se assemelhar a uma crônica, já que elas pegam situações extremamente comuns que passam despercebidas. Mas o fato dos acontecimentos serem cotidianos e comuns, não tira o brilhantismo do filme. Pelo contrário, o faz brilhar ainda mais por expor uma realidade velada por ser “insignificante” de tão corriqueira e repetida. Afinal, quem não conhece uma, duas, três ou milhares de Valdirenes?


A Val do filme teve de deixar sua única filha, Jéssica, em Pernambuco para buscar um emprego e uma condição de vida melhor em São Paulo. Barbára, sua patroa, também negligencia os cuidados do filho deixando-o quase que inteiramente com a babá, interpretada por Casé.


Ainda no início do filme, Fabinho (Andrey Lima Lopes) pergunta onde está sua mãe e a que horas ela volta e é exatamente a mesma pergunta que Jéssica se fazia lá no interior de Pernambuco. Repetição essa que mais para frente se confirma ser uma metáfora para indicar que esse processo de ausência e abandono é um ciclo, principalmente entre mulheres que se assemelham com Val, mulheres que deixam seus filhos para criar filhos de outras mulheres.




(Reprodução/Globo Filmes)

O filme não é moralista ao condenar ou absolver as mães por não terem, seja por qual motivo, participado ativamente da criação de seus filhos, mas ilustra como os traumas e o ressentimento é parecido nos dois jovens. Fabinho não sabe receber o carinho de Bárbara, mas gosta do carinho de Val e nos momentos de angústia é a ela a quem ele recorre deixando a sua mãe desconcertada. Para compensar sua ausência, escancarada por seu filho ao responder por que ele não aceitava seus chamegos, e para distraí-lo da dor e do recalque que ele sente devido a um acontecimento marcante, Bárbara o presenteia com um intercâmbio bancado com o dinheiro que o patriarca da família, José Carlos, herdou de seu pai. O “doutor”, como Val o chama, tem a melhor das profissões: ele é herdeiro. Sonho de todos nós, não é? Viver do trabalho dos outros.





(Reprodução/Globo Filmes)


A viagem, porém, não vai suprir a falta de pais presentes, mas é assim que eles lidam com seus problemas, terceirizando-os. Jéssica, por sua vez, não sabe como reagir aos carinhos de sua mãe e os rejeita, pois nunca os recebeu. Mas ao finalmente, ser acolhida, defendida e ser motivo de, ainda mais, orgulho para Val, a personagem a reconhece como mãe. Sem viagens, sem presentes. Só a presença e o amor.


O filme não é só uma reflexão sobre maternidade, mas também é uma crítica social afiada sobre as condições precárias e as humilhações sofridas pela classe de empregadas domésticas.

Por que falamos empregadas domésticas, no feminino, e sobre outras profissões falamos no masculino? Talvez porque segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, realizada pelo IBGE no ano de 2021, o Brasil tinha 5,7 milhões de empregadas domésticas e noventa e dois por cento desses milhões são mulheres. 65% são negras. Ou seja, os trabalhos de reprodução social, cuidado com a casa e criação de crianças, é majoritariamente feito por mulheres.


As donas de casa não são remuneradas por tais tarefas, mas quando elas reivindicam poder trabalhar fora e designam outra mulher para cobrir seu serviço, elas a remuneram mal e não garantem todos os direitos que as trabalhadoras têm. Pois em 2020, de acordo com a Pnad, 3,4 milhões de trabalhadoras domésticas não tinham carteira assinada. E isso tem profunda relação com o filme. Mesmo tendo sido filmado em 2015 ele é extremamente atual. Sendo Val uma mulher racializada, já que no Brasil nortistas e nordestinos sofrem xenofobia, e designada por uma mulher branca de elite a cuidar do trabalho que ela se exime de fazer.


“Que horas ela volta?” ainda vai além ao estampar os preconceitos e o recalque da elite, e da classe média, brasileiras com a classe trabalhadora menos abastadas. A primeira se refere a quando Jéssica passa no vestibular da USP e Fabinho não. Vestibular esse que foi ilustrado pelos personagens como um dos mais difíceis de São Paulo. Bárbara ainda tenta sair por cima dizendo que não adiantaria que a filha de Val tivesse só passado na primeira fase e o espectador pode sentir a torcida implícita dela para que a menina não consiga tal feito. O que remete à postura da elite nacional, pois o próprio ministro da Economia apresenta falas em relação ao Fies como, “uma bolsa para todo mundo” e aceita até filhos de porteiros que tiraram zero na prova. Jéssica não tirou zero, tirou 68 e isso é chocante para a patroa de sua mãe.




(Reprodução/ Globo Filmes)


Ainda nesse sentido, é mostrado como tudo na casa é separado por classe. Val dorme num puxadinho apertado no fundo da mansão, tem sua própria comida e um lugar específico de circulação. Bárbara acha um absurdo quando Jéssica come o sorvete de seu filho e diz “é por isso que o sorvete do Fabinho acaba rápido”. Assim como Guedes disse que a alta do dólar era boa, pois tinha até empregada indo para a Disneylândia. Pois é, Paulo, Bárbara também acharia um absurdo, porque quando Fabinho foi pra Disney não tinha essa “festa danada”.


O nojo de Bárbara por quem não é do seu círculo social chega ao extremo, fazendo com que a patroa ordene que a piscina seja esvaziada e limpa depois de a filha da empregada nadar e justifica dizendo que foi um rato que esteve por lá. Porém o filme não é feito só de cenas cruéis, mas também de momentos de regozijar no sofá. Como por exemplo quando Val dá um conjunto de xícaras que Bárbara finge achar lindo, tal como Regina George com a pulseira vintage da sua colega de escola, mas se recusa a usar e no fim do filme ela “rouba” o conjunto para si, já que o achou tão lindo e chique.


A cena de Bárbara servindo o café da manhã para Jéssica é de sorrir de orelha a orelha. E a que foi, para mim, a cena mais bonita do longa: Val entra na piscina da casa pela primeira vez. E é a primeira e praticamente única vez que a trilha sonora se faz explicitamente presente, em acordes clássicos de encher os olhos e aquecer o coração de quem não é como Bárbara e tem um pulsando no peito.



(Reprodução/Globo Filmes )

Por fim, queria desejar a todas as Valdirenes, e Ednas e Raimundas um feliz dia das mães. Torço para que vocês entrem em todas as piscinas que quiserem e se apoderem de todos os pires que lhes pertencerem.

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