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Construindo um sonho: futebol feminino e a trajetória da sanjoanense que chegou ao Equador

Maiara Sousa

Natural de São João del-Rei e moradora do bairro Araçá, Gabrielle, tinha 18 anos quando saiu de casa pela primeira vez para jogar profissionalmente em um clube, movida apenas pela certeza que esse era o caminho certo a ser seguido. Quatro anos depois, o sentimento carregado no peito se materializou na própria história. Hoje, com 22 anos, a sua rotina é dedicada integralmente para se preparar para o momento em que vai poder voltar a campo em nome de um time. Mas esse não é nem de longe o principal motivo que a move para fazer o que faz.


O esporte e a arte talvez sejam substâncias que correm junto com o sangue em suas veias. A mãe, por muitos anos antes do nascimento, de quem viria a começar a fazer história no Campo das Vertentes, era passista de escola de Samba - desfilou por 20 anos e seguiu até os nove meses de gestação.


Também neta de atleta, a avó vascaína provavelmente não imaginava que Gabrielle jogaria no tão sonhado time anos depois, e talvez hoje, não consiga compreender que de fato o sonho se materializou na trajetória da neta. Há sete anos, Dona Maria Helena - a Dona Lena - sofreu um Alzheimer e mesmo que talvez não se recorde, foi responsável pela decisão que talvez tenha sido o divisor de águas da vida da neta.



Foto: Atleta no campo de futebol. (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Ainda na pré-adolescência, a avó, também dona de um clube de futebol, foi quem tomou a iniciativa de colocar a pequena Gabi, que na época tinha entre sete e oito anos, em uma escolinha do bairro. Os jogos de rua ganharam uma projeção maior e aquela, seria uma das tantas decisões ao longo do caminho que construíram a sua trajetória. Desde criança, Gabrielle dividia o campo, na maioria das vezes, com outros meninos. Durante os campeonatos, ser a única mulher em campo fez com que ela presenciasse e ouvisse muitas tentativas de desmerecimento da sua presença enquanto mulher naquele espaço, que por muitos anos - e ainda hoje - é tido como masculino. Quando não eram os próprios jogadores que diminuíam a sua presença, os pais de outras crianças pediam a retirada da jogadora de campo.


Aquele não era o espaço dela, e ela reconhece bem isso. Ela ocupava um espaço que não era destinado para si, e nem para qualquer outra menina que quisesse estar dentro do futebol. Apesar da desmotivação externa, nas próprias palavras de Gabrielle, a sua única alternativa: “era ouvir e continuar”. E ela continuou. Com 14 anos, começou a jogar em um time feminino, em Santa Cruz de Minas, onde recebeu o prêmio de “Melhor meia-atacante”, pelo IV Campeonato Regional Feminino de Santa Cruz de Minas.


Ainda com 16 anos, ela chegou a ser escolhida para jogar em um time profissional, mas pela limitação financeira para contratação de jogadoras, o time não conseguiu ser formado. Sua primeira atuação profissional aconteceu dois anos depois, em 2018, quando foi para o América Mineiro, em Belo Horizonte. Porém, apesar de ter saído de São João del-Rei para integrar o time em outra cidade, ela não conseguiu ser escalada para os jogos. No ano seguinte, a história se repetiria, mas desta vez, em Ipatinga.


A entrada em um time de fato aconteceu em 2020. Gabrielle, se mudou para o Rio de Janeiro para fazer parte do Vasco, onde ficou por oito meses. Durante esse tempo, para que ela pudesse permanecer na cidade, a mãe complementava a renda com faxinas, e ela, se dedicava integralmente para fazer daquele momento o mais proveitoso. Ali era mais uma decisão difícil, mas que construiria um terreno de possibilidades pela frente. Diferente do que muitos acreditavam, e do que haviam entregado de proposta para ela, a são-joanense não recebeu nenhuma quantia financeira pelo tempo que ficou por lá. Enquanto morava na casa de parentes na cidade carioca, a única certeza que ela tinha, era que continuar ali era preciso para a construção de uma trajetória futura.


Em 2022, veio o convite para a ida ao Equador - a são-joanense permaneceu no país durante três meses. Com um vídeo ainda amador e sem clube, a possibilidade de integrar o time parecia minimamente possível. Após sair do Vasco e depois de passar pelo Tiradentes do Piauí, em 2021, e retornar para São João del-Rei, durante os três meses que seguiu sem time, Gabrielle preparava o que seria uma espécie de currículo - selecionava os melhores momentos dos jogos disputados para integrar um vídeo de apresentação do seu trabalho. Mesmo tendo passado por clubes significativos, não ter entrado em campo tantas vezes continuava colocando-a em uma posição amadora, do ponto de vista técnico. Entretanto, o convite veio mesmo assim para ida ao Equador, através da Liga Deportiva Universitária, conhecida como LDU - clube de futebol equatoriano - em maio.



Gabrielle Dias jogando futebol. (Reprodução/Lenin Israel Caiza)

Ela fez história por lá - a brasileira foi a primeira a marcar um gol na Superliga Feminina Equatoriana. Contudo, apesar de glamour e luxo serem livremente associados a jogadores, quando direcionamos nossos olhares para o recorte feminino, outros cenários passam a ser construídos com a realidade enfrentada por essas profissionais.


A diferenciação salarial, mais do que a falta de reconhecimento e investimento no futebol feminino, impacta no próprio processo de construção de uma trajetória que não precisaria ser tão árdua. São inúmeros investimentos que não têm espaço: profissionais essenciais para auxiliar na própria saúde física e mental, na evolução de carreira e na ascensão social. Escolher o futebol sendo mulher é jogar por amor, mais do que qualquer coisa.


Gabrielle é um recorte representativo do que isso significa. Hoje, toda a sua rotina de treino e alimentação vem da busca própria por informação e da bagagem adquirida durante esses anos. Não existe ainda, a possibilidade de profissionais que possam ajudar durante esse processo.

No Brasil, o ganho dentro dos clubes chega a um salário mínimo, e ainda que alguns vejam a sua passagem pelo Equador como algo glamoroso, por lá, chegava apenas ao equiparado a dois salários mínimos brasileiro.


Ela sabe do peso que a sua história pode continuar tendo em outras pessoas. Com os olhos brilhando e sorrindo, ao falar do futebol, me sinto na posição de afirmar que Gabrielle concretiza o desejo singelo de ser referência e que se tornou a profissional que tanto almejava. Enfrentando e lutando todos os dias pela permanência dentro do futebol feminino, ela encontrou ao longo do caminho, dentro de si e da sua espiritualidade, o oásis para continuar trilhando seu caminho enquanto mulher, negra e jogadora de futebol, onde o principal motivo para seguir fazendo o que faz é a chance é marcar as tantas vidas que a cercam.


Escolher o futebol é uma escolha de renúncia. Relacionamentos e certas vivências são colocados em plano de fundo enquanto se constrói o próprio sonho. E ela segue construindo-o.



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